Instalação Floresta Sonora realizada no LabMis 2011 – Laboratório de Novas Mídias do Museu da Imagem e do Som de São Paulo.



Ao adentrarmos uma floresta, somos confrontados com uma intrigante questão: onde estão todos os animais? A densa folhagem confunde nossos sentidos, tornando difícil distinguir as diferentes espécies nesse emaranhado de sensações. A existência de um vasto universo de vida se torna tão palpável quanto invisível.

Nesse aglomerado de matéria e vida de uma floresta, a audição exerce um papel essencial. Ao adentrá-la com a escuta aguçada, num primeiro momento, conseguimos perceber os sons dos fenômenos naturais: o roçar das folhas ao vento, a chuva caindo, o balançar das árvores, trovões, etc. A geofonia do lugar. Dos sons produzidos pelos animais, a biofonia,  apenas alguns insetos e pássaros distantes podem ser ouvidos. Ao nosso redor, os animais permanecem praticamente silenciosos. O silêncio é a primeira resposta à nossa presença.

A sinfonia da natureza se desarticulou. Alguns animais correram, outros voaram e muitos se paralisaram em silêncio. O intruso é cuidadosamente analisado e, desde que não seja percebido como uma ameaça, alguns animais retomam seu comportamento normal. No entanto, outros só retornarão quando o intruso se afastar. Alguns, ainda mais reservados e temerosos, podem até mesmo fugir permanentemente, buscando refúgio em locais distantes para evitar futuros encontros.

A nossa presença e os sons que ela provoca desencadeiam uma nova configuração desse ambiente, lançando-nos diante de um desafio: será que podemos conversar com a floresta? Qual é o diálogo possível? Como ela nos ouve? O que ela nos diz? E como devemos responder a ela?



Movidos por esse desafio, o coletivo Banda Esquizofônica construiu um instrumento sonoro em dois locais separados por 37 km de distância. No Museu da Imagem e do Som de São Paulo, uma escultura que simula uma serapilheira composta por 3 toneladas de discos de metal empilhados sobre limalha, com uma rede de sensores pelos quais as pessoas caminham e produzem ruídos. Do outro lado, em uma Área de Soltura e Monitoramento de Animais Silvestres em um trecho preservado da Mata Atlântica, encontra-se a paisagem sonora natural de um pequeno e bucólico riacho frequentado por inúmeros animais.

Unindo esses dois universos distantes, um sistema circular é formado. Através de uma rede de sensores de contato, uma interface computacional com internet se conecta a antenas com emissores/receptores de radiofrequência, amplificadores, caixas de som e microfones. Esse sistema recebe, reproduz, captura e envia sons de uma localidade para a outra, criando uma música que se auto-genera e se transforma continuamente, com uma pequena latência. É um grande instrumento musical concebido para criar uma interação musical entre os visitantes da instalação e os animais de uma floresta.

A Floresta Sonora convida o visitante a participar de um diálogo musical entre civilização e natureza, que se desenvolve através de nossos próprios passos. É um diálogo entre humanos e máquinas, uma experiência estética que se desdobra em dois espaços distantes, formando um sistema circular de retroalimentação. Essa interação cria uma música híbrida, unindo diferentes paisagens sonoras, onde as sonoridades desses dois ambientes distantes ressoam em uníssono.

Esse diálogo estabelece uma simbiose entre os interlocutores, transcende seus próprios signos individuais e dá origem a uma obra autônoma que os une em uma espécie de microfonia controlada. É uma comunhão sonora que busca levar ao máximo o conflito entre a floresta e a humanidade, resultando em música que transborda de choque e acaso.

A Natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam escapar, às vezes, confusas palavras;
O homem ali passa por entre florestas de símbolos
Que o observam com olhares familiares.


Como longos ecos que ao longe se confundem
Em uma tenebrosa e profunda unidade,
Vasta como a noite e como a claridade,
Os perfumes, as cores e os sons se correspondem.

Há perfumes frescos como carnes de crianças,
Doces como oboés, verdes como as pradarias,
– E outros, corrompidos, ricos e triunfantes,

Tendo a expansão das coisas infinitas,
Como o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso,
Que cantam os transportes do espírito e dos sentidos.

Correspondências
Charles Baudelaire

A floresta é símbolo do mistério. Fechada, enraizada, sombria e secreta. 

A floresta transcende diversas culturas como um santuário em sua forma natural, um lugar sagrado para o diálogo com os deuses, um refúgio de paz e silêncio que convida à introspecção e à meditação. No entanto, sua natureza é ambivalente, pois também se revela como um local devorador e aterrorizante, habitado por criaturas selvagens, onde uma infinidade de perigos e armadilhas espreitam.

A floresta é um ambiente desafiador, capaz de despertar diferentes sentimentos e experiências. Assim como retratado nos contos da Chapeuzinho Vermelho, pode ser vista como um lugar a ser evitado. Por outro lado, nas histórias de Joãozinho e Maria, a floresta se revela um labirinto a ser percorrido e desvendado.

Além disso, a floresta também pode ser interpretada como uma alegoria para o pecado cristão,  um lugar de desvio e confusão moral, como nos mostra a famosa frase da Divina Comédia: "No meio do caminho da nossa vida, encontrei-me em uma selva escura, tendo perdido o verdadeiro caminho".

Ou então um local libertário, um refúgio da realidade opressora, onde se pode escapar das amarras das pressões e regras, um lugar envolto em brumas, onde seres mágicos prosperam e transformações ocorrem, como exemplificado nas histórias da Branca de Neve e de Alice no País das Maravilhas.

A floresta também simboliza um limite, a borda da civilização onde as cidades terminam e os malandros e bandidos se refugiam, esperando por viajantes vulneráveis. É o lar dos marginalizados, como Robin Hood e sua dualidade moral, ou um esconderijo para os amantes perseguidos e exilados, como retratado no conto hindu de Rama e Sita.

Adentrar a floresta é adentrar o limiar: onde a alma se lança aos perigos do desconhecido, ao reino da vida e da morte, ao santuário da natureza que a humanidade deve explorar e encontrar um significado.

ESCUTAR UMA FLORESTA

Escutar uma floresta é uma experiência profunda e envolvente que abrange várias dimensões. A floresta possui um caráter simbólico que nos remete a histórias, mitos e metáforas, conectando-nos a um senso de transcendência e mistério. Além disso, a floresta revela-se como uma experiência estética e musical rica em complexidade.

Ao escutarmos com atenção, somos capazes de discernir os diferentes ritmos e percussões naturais, as camadas de sons agudos, médios e graves, os solfejos dos pássaros, os trinados dos insetos e as repetições harmônicas presentes na natureza. Essa diversidade sonora cria uma sinfonia complexa em suas nuances e intrincados arranjos.

Do ponto de vista fisiológico, a audição possui características próprias que podem inicialmente nos impedir de compreender plenamente a dimensão científica da escuta da floresta. Ao contrário da visão, que direciona nosso olhar para objetos específicos, a audição capta um amplo espectro de frequências em um campo sonoro quase tridimensional. No entanto, normalmente, percebemos conscientemente os sons na paisagem sonora quando ocorrem mudanças significativas, como a introdução de novos sons, variações de volume e intensidade, ou a súbita ausência de determinados sons.



Nosso cérebro é habilidoso em selecionar os sons mais relevantes para a análise, enquanto outros permanecem submersos em nossa consciência. Essa seletividade nos permite focar nos aspectos sonoros mais importantes e relevantes em determinado momento. No entanto, expandir nossa capacidade de perceber, processar e avaliar os sons simultâneos em uma floresta, por meio de uma escuta atenta e com o auxílio de ferramentas tecnológicas, como microfones, computadores e programas de análise de dados, nos permite compreender melhor o ambiente sonoro em sua totalidade em uma área da ciência que tem tido um rápido avanço, a bioacústica. Isso inclui a identificação de diferentes agentes e a compreensão das interações entre eles, sejam eles humanos ou não humanos, além de apreciar os fenômenos naturais e as mudanças que nós, como seres humanos, impomos à floresta.

Por fim, a escuta da paisagem sonora da floresta transcende as dimensões simbólicas, estéticas, musicais e científicas. Ela também nos fornece informações valiosas sobre a sobrevivência desse ambiente. Ao nos conscientizarmos da destruição massiva que ocorre nas florestas, despertamos uma dimensão ética que nos leva a refletir sobre a importância da preservação e a adotar ações que promovam a sustentabilidade e o respeito. A escuta atenta da floresta pode ser um poderoso lembrete da interdependência entre os seres humanos e a natureza.

CORTE E QUEIMA!

Apesar da inestimável riqueza de vida que as florestas contêm e de seu incalculável valor para a sobrevivência da humanidade, observados em sua influência sobre os sistemas climáticos, na proteção e formação do solo, nos sistemas hidrológicos e muito mais, é alarmante testemunhar a crescente destruição das florestas em todo o mundo, impulsionada pela extração de recursos naturais, como a madeira para produção de carvão vegetal e celulose, caça, agricultura, pecuária e o avanço da urbanização.

Embora tenha havido algum progresso na conservação das florestas nos países industrializados do norte da Europa, onde grande parte da cobertura arbórea já havia desaparecido desde o início da Revolução Industrial, o processo de destruição das florestas tropicais se intensificou de maneira brutal e o Brasil é o país que lidera o desmatamento, com mais de 40% da derrubada de florestas tropicais primárias no mundo ocorrendo aqui, especialmente na Amazônia.

A destruição das florestas está profundamente enraizada na construção do Estado Brasileiro. Um dos produtos de exportação mais emblemáticos do Brasil, o Pau-Brasil, uma árvore de madeira avermelhada, era tão comum e importante para a economia da colônia que conferiu o próprio nome ao país. No entanto, hoje essa espécie está ameaçada de extinção.



O desaparecimento das florestas continuou a acompanhar a trajetória de ocupação do território brasileiro, impulsionado pela criação de gado, plantações de cana-de-açúcar, café, desenvolvimento industrial, turismo e urbanização. Um exemplo marcante é a Mata Atlântica, um bioma afetado desde o início da colonização que agora abriga 72% da população brasileira, três dos maiores centros urbanos da América do Sul e concentra 70% do PIB do país. Infelizmente, resta apenas 7% da área original da Mata Atlântica, e grande parte desse remanescente está subdividida em pequenos fragmentos. Esses fragmentos são refúgios pequenos e estão sob pressão constante devido ao seu entorno. Ainda assim, a Mata Atlântica é uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta, estimando-se que existam cerca de 1,6 milhão de espécies de animais nesse bioma. No entanto, a Mata Atlântica também é o bioma brasileiro com o maior número de espécies de fauna e flora ameaçadas, totalizando 1.989 espécies, o que equivale a 25% (ou uma em cada quatro) do total de espécies avaliadas nesse bioma. Além disso, é importante ressaltar que a Mata Atlântica também concentra o maior número de espécies extintas.

Com a expansão da colonização para os demais biomas brasileiros, a devastação se espalhou por todo o território nacional. A Caatinga, o Cerrado e a Floresta Amazônica têm diminuído em ritmo acelerado, e os locais que servem como refúgio para a fauna e a flora estão se tornando cada vez mais raros. Se não forem tomadas medidas efetivas para preservar esses ecossistemas, a floresta, um santuário da natureza, um lugar simbólico de mistério e um refúgio para a vida, corre o risco de ser silenciada, tornando-se apenas uma lembrança distante dos contos de fada do passado.

Banda Esquizofônica
Do grego, skhizo significa cortar, separar; phone é a palavra para som e voz. Murray Schäfer, em seu livro A Afinação do Mundo, descreve a Esquizofonia como a separação entre um som original e sua transmissão ou reprodução eletroacústica. A Banda Equizofônica cria, de maneira multidisciplinar, esculturas sonoras feitas para dialogar, provocar, propor questionamentos estéticos a cerca da paisagem sonora na cidade e na floresta, evidenciando o som original e sua reprodução.

EXPOSIÇÃO E RESIDÊNCIA LABMIS – OBRA FLORESTA SONORA – 2012
Autoria: Coletivo Banda Esquizofônica (Eduardo Duwe, José Silveira, Kako Guirado, Moacir Carnelós)
Performance de Renata Casemiro
Orientação teórica: Daniela Kutschat
Assistência Técnica: Fabio Moreno
Agradecimentos: Usina Sonora, Grupo FZT Tecnologia, Área de Soltura e Monitoramento de Animais Silvestres Parque Jussara

VÍDEO
Direção, Fotografia e Edição: Eduardo Duwe
Produção: Nômade Filmes
Ano: 2013

FESTIVAL DE ARTES DIGITAIS – FAD BELO HORIZONTE – 2010